No momento em que o governo tenta melhorar a relação com representantes do agronegócio, majoritariamente alinhados ao bolsonarismo, a declaração em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva comparou parlamentares ligados ao setor à “raposa cuidando do galinheiro” voltou a acirrar a tensão com a bancada ruralista e dificultar o ambiente no Congresso. O grupo, que reúne mais de 300 deputados e senadores, tem sido uma pedra no sapato do petista no Legislativo e promete se alinhar à oposição para impor novas derrotas ao Palácio do Planalto.
Na avaliação de parlamentares, a declaração de Lula evidenciou que, apesar de gestos de aproximação, como o apoio do governo ao projeto que facilita o uso de agrotóxicos no país, chamado de PL do Veneno por ambientalistas, a relação do Executivo com representantes do agronegócio no Congresso continua tumultuada.
A comparação foi feita por Lula durante discurso na Cúpula do Clima (COP-28), em Dubai. Ele usou o termo pejorativo ao comentar a apreciação do marco temporal das terras indígenas pelo Congresso. O presidente vetou a maior parte do projeto, aprovado em setembro pelo Senado, mas já dá como certa a derrubada da sua decisão pelo Congresso.
“Criminalização”
A proposta, impulsionada pela bancada ruralista, estipula que os povos indígenas têm direito a ocupar apenas territórios onde já estavam ou que reivindicavam antes da promulgação da Constituição de 1988. Lideranças indígenas contestam o entendimento e afirmam que ele ameaça a sobrevivência de comunidades e a preservação de florestas. O Supremo Tribunal Federal (STF) já considerou a tese inconstitucional, mas deverá ser novamente provocado caso o Congresso derrube o veto de Lula.
— A gente tem que se preparar para entender o seguinte: ou nós construímos uma força democrática capaz de ganhar o Poder Legislativo, o Poder Executivo, e fazer a transformação que vocês querem, ou nós vamos ver o que aconteceu com o marco temporal. Querer que uma raposa tome conta do nosso galinheiro é acreditar demais — disse o presidente em discurso na cúpula internacional, no sábado.
A reação da bancada ruralista veio um dia depois, no domingo, com uma nota dura na qual acusa o petista de “criminalização da produção rural no Brasil”. “Lula sinaliza para a criminalização da produção rural no Brasil, para a fragilização de direitos constitucionais, em busca de perpetuação no poder e de uma democracia fraca, dependente e corrupta, incapaz de debater seriamente um tema que impacta milhares de famílias brasileiras, expulsas de suas casas em razão de laudos técnicos e ideológicos”, diz o comunicado.
Para integrantes do governo, o discurso de Lula foi uma tentativa de afagar indígenas e ambientalistas durante a COP-28 diante de sinais difusos de sua gestão em relação às pautas voltadas à preservação do meio ambiente. Entre eles, o apoio ao PL dos Agrotóxicos, aprovado no Senado com amplo apoio governista.
No Ministério da Agricultura, apesar de admitirem certo exagero na fala de Lula, a avaliação interna é que ela foi feita em um ambiente direcionado, em um evento ambiental, com foco para ecoar neste segmento e impactar positivamente na imagem do Brasil no exterior.
O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, é quem tem feito a ponte do governo com os ruralistas e já expôs sua divergência com o presidente em relação ao marco temporal. Senador licenciado, Fávaro ainda avalia se irá reassumir o mandato para votar pela derrubada do veto de Lula. O ministro integra a comitiva presidencial que viajou a Dubai para participar da COP28.
O próprio Planalto não tem se empenhado para reverter a provável derrubada do veto. Como mostrou O GLOBO, após construir um acordo com a oposição para viabilizar a votação da Reforma Tributária em novembro, o governo passou a admitir a derrubada dos vetos do marco temporal.
No discurso em Dubai, o presidente também pediu que a ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas) usasse sua simpatia para “tentar convencer os caras” (parlamentares) a não derrubarem seu veto. Para membros do governo, a aprovação do projeto do marco temporal pelo Congresso com amplo apoio se deu em grande parte também pela falta de articulação do próprio Ministério dos Povos Indígenas, que se manteve distante das negociações. Uma das críticas à ministra é que ela cumpria agenda fora do Brasil na semana da votação pelo Senado. Procurada, ela não se manifestou.
Outras derrotas
A tensão corre o risco de se alastrar para outras pautas caras ao governo, como os vetos de Lula a trechos do projeto do arcabouço fiscal e do que trata do voto de qualidade do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf). A manutenção desses dois pontos é vista como crucial para a saúde das contas públicas nos planos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Segundo líderes da base, a declaração de Lula atrapalhou até mesmo uma tentativa de evitar uma derruba completa do veto ao projeto do marco temporal. Aliados negociavam que o Congresso revertesse apenas os chamados “penduricalhos”, itens considerados estranhos ao texto, como o que flexibilização do contato com povos isolados.
Ao GLOBO, o presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-RR), disse que faltou habilidade do presidente ao usar o evento internacional para atacar o Congresso.
— A COP deveria ser ambiental, e virou palco de um bando de inábeis diplomáticos. Enterrar (o acordo) Mercosul-UE (União Europeia), arrumar briga com a Guiana, criticar Israel, e ainda fazer acordo com combustíveis fósseis em evento climático. Atacar o Congresso foi o mais light que Lula conseguiu fazer— afirmou Lupion.
A irritação da bancada ruralista aumentou ainda mais ontem, quando a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), entrou na polêmica e disse que a bancada não fala em nome do “sucesso do agronegócio”.
“Em nome de quem a Frente Parlamentar Agropecuária ataca @LulaOficial pelas posições que ele defendeu na COP 28? Em nome do Brasil e do sucesso do agronegócio é que não. Nenhum presidente fez mais pela expansão da agropecuária e sua sustentabilidade do que Lula, em seus 3 governos”, escreveu a deputada em seu perfil em uma rede social.
Além da repercussão negativa da fala de Lula, integrantes do Ministério da Agricultura se ressentem pelo fato de o governo ainda não ter editado o decreto que cria o programa de recuperação de pastagens degradadas, previsto para ser um dos destaques da participação brasileira na COP 28. O texto, em análise na Casa Civil, não ficou pronto a tempo de ser apresentado no evento.
Em meio ao mal-estar, o assessor especial do Ministério da Agricultura, Carlos Ernesto Augustin, nome de confiança de Fávaro, se reuniu com Lupion nos Estados Unidos, onde participam de evento da associação de comerciantes de sementes: The American Seed Trade Association (ASTA). Ambos conversaram na viagem sobre a nota divulgada pela bancada ruralista no domingo.
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