Ser mulher, por si só, exige energia para lidar com os desafios da desigualdade de gênero. Imagine, então, empreender, em um contexto no qual múltiplas funções são cobradas. É preciso coragem, como diz a empresária Geovanna Mara, 36 anos. Demitida após usufruir uma licença maternidade, a então advogada decidiu virar a chave e atuar no setor de vestuário. Assim como ela, 148,46 mil mulheres se tornaram donas de negócios no Distrito Federal, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com esse levantamento, feito no terceiro trimestre de 2022, o número representa 35% do total de empreendedores no país, em contraste com os 275,67 mil homens (65%) que fizeram a mesma opção.
Antes de abrir a sua loja, em 2018, Geovanna se dedicava ao Direito trabalhando no setor de contratos e licitações de uma empresa privada. Essa companhia, porém, não quis mantê-la em seu quadro de funcionários quando se concluiu o período a que ela tinha direito após dar a luz à sua bebê E foi a chegada da filha que lhe deu a força para viver um antigo sonho. “Eu sempre sonhei em ser empreendedora e sempre gostei de moda, mas, até aquele momento, via como algo a ser realizado em um futuro distante. Parece clichê, mas a maternidade deixa a gente corajosa. Depois da minha demissão e da chegada da minha filha, surgiu força e coragem para seguir meus sonhos”, conta.
Quem pensa em dar um passo como o de Geovanna tem de considerar que conciliar trabalho e filhos é um eterno equilibrar de pratos, segundo a própria advogada diz. “Hoje, tenho uma menina e um menino. Graças a Deus, tenho uma rede de apoio muito boa. Meu marido divide as funções comigo e é muito presente. Consigo ajustar minha rotina diária para ter uma manhã tranquila com os meus dois filhos e, quando deixo eles na escola, vou para a loja”, relata. Também é preciso levar em conta que empreender, ainda que possa garantir uma condição estável em algumas frentes (financeira, da criatividade, da satisfação profissional etc), sempre exigirá algum sacrifício. Geovanna, por exemplo, só conseguiu tirar férias em janeiro deste ano, seis anos depois de montar a sua Closet Mara. “Deixei uma funcionária cuidando de tudo, mas a gente que é empreendedora nunca desliga completamente”, ressalta.
Saboreando o sucesso
Do total de empreendedoras do DF, 56,9% são negras e 42,3% são brancas. A confeiteira Fernanda Pinheiro Santos, 28, está inclusa no primeiro grupo. Formada em gastronomia, orgulha-se da sua confeitaria, aberta em 2020. “Sempre gostei muito de cozinha, então, em 2013, fiz um primeiro curso na área e me apaixonei. Desde criança assistia a programas de culinária na TV, hobby que ainda mantenho”, comenta ela, que também foi funcionária de outras pessoas.
O que motivou Fernanda a ir adiante com o seu Doce Ateliê e a abrir mão da carteira assinada foi sua inquietação com o modelo de trabalho CLT — Consolidação das Leis do Trabalho. Ela o considera exaustivo e pouco produtivo. “Nessa época, eu gastava muitas horas no trabalho e tinha pouco tempo para mim. Adoeci. Acredito que se os horários fossem flexíveis, as mulheres conseguiriam conciliar melhor carreira e maternidade, por exemplo”, opina. Além disso, se decepcionou com o salário que recebia. “O que anteriormente eu ganhava em um mês, hoje consigo lucrar em poucos dias”.
No início do Doce Ateliê, sua fundadora não ficava num balcão. Mesmo porque ele não existia fisicamente. Vendia seus produtos nas ruas, até que as encomendas aumentaram e decidiu produzir apenas quando recebia pedidos. Entretanto, nessa caminhada, nem tudo foram flores. “Quando você depende do seu negócio pra viver, fica em uma corda bamba de precisar fazer várias coisas ao mesmo tempo, conforme a empresa cresce. O desespero bate quando a demanda cresce e é preciso fazer tudo sozinha”, recordou. Atualmente, ela atende cerca de 40 clientes por mês.
A confeiteira, no entanto, nunca desanimou, outra prerrogativa para quem quer empreender. E mesmo olhando para todos os desafios que enfrentou, Fernanda avalia positivamente o desempenho do seu empreendimento. Considera que o retorno é bom e festeja ainda ter liberdade para trabalhar nos sabores, novidades bem aceitas pelos clientes. As vendas têm aumentado e, em datas comemorativas, como Páscoa e Natal, a procura pelos doces multiplica. No momento, está empolgada com a abertura da sua loja física. “Eu tô com uma lojinha pré-pronta na Asa Sul, que será inaugurada em breve. Fico muito feliz, pois toda encomenda que sai volta com muitos clientes novos, que viram fãs dos nossos doces”, celebra. Para o futuro, ainda pretende dar aulas e repassar os seus conhecimentos em culinária. Mais um empreendimento.
Negócios
Coordenadora Nacional de Empreendedorismo Feminino do Sebrae, Renata Malheiros ressalta que o comportamento empreendedor é uma função inerente às mulheres. E se destacam as que têm talento para planejamento, criatividade e sabem buscar parcerias. “Temos uma força relevante das mulheres empreendendo e buscando estabilidade e independência financeira”, comenta. Por outro lado, a especialista pondera que ainda há situações culturais que dificultam muito a vida das empreendedoras, e por isso muitas mulheres acabam desistindo. “Infelizmente, as tarefas de cuidado doméstico, com crianças e com idosos, ainda caem de maneira muito a sobrecarregar as mulheres”, aponta ela listando algumas responsabilidades que nem sempre homens estão dispostos a assumir.
Renata também ressalta que existe uma outra questão crucial para se dedicar ao empreendedorismo: o fator tempo. “O dia tem 24 horas para todo mundo e o que a gente faz com essas horas é que faz a diferença. As pesquisas do Sebrae descobriram que as mulheres empreendedoras dedicam 17% menos horas às suas empresas do que os homens empreendedores. E o motivo é justamente porque elas estão sobrecarregadas com os trabalhos de cuidados (domésticos)”, informa a coordenadora. “O IBGE nos mostra que as mulheres no Brasil dedicam o dobro de horas às tarefas de cuidado com a casa, com as crianças e com os idosos em comparação aos homens. Então, essa conta não fecha. As mulheres precisam de mais tempo para se dedicarem aos seus negócios”, completa.
A Especialista em Carreira e Empreendedorismo do Centro Universitário de Brasília (CEUB) Juliana Nóbrega explica que há dois tipos de empreendedorismo: por necessidade e por oportunidade. “Temos mulheres que acabam empreendendo como única fonte de acesso a renda. Neste universo, apesar de a gente ter avanços significativos, é importante observar os recortes: mulheres que empreendem usufruindo dos seus privilégios e mulheres que empreendem por necessidade, porque é notório que a gente precisa continuar avançando para que as mulheres tenham emancipação financeira e profissional”, detalha.
Ela acrescenta que algumas mulheres acabam optando por um empreendedorismo por necessidade ao assumirem a maternidade. “Quando viram mães, elas são empurradas para o empreendedorismo. A gente observa que parece que mais de 50% das mulheres, quando voltam da licença maternidade, são demitidas ou elas mesmas pedem as contas justamente porque a falta de flexibilidade de horário de trabalho no mercado corporativo dificulta”, complementa.
Maternidade
Profissional na área de Recursos Humanos, Cintia Aguiar vê um aumento no número de empreendedores e de pequenos e microempresários no país nos últimos anos, principalmente depois da pandemia. E ressalta haver cada vez mais mulheres aderindo a isso. Para justificar esse crescimento, a especialista destaca a dificuldade que muitas atuais empreendedoras têm ou tiveram para manter seus postos de trabalho ou ocupar novas vagas em um emprego devido a serem mães ou simplesmente terem essa possibilidade, caso de muitas mulheres que são noivas. “Mulheres recém-casadas, que estão noivas ou com filhos pequenos têm muita dificuldade em arrumar emprego. O dono da empresa acha que a demanda delas de responsabilidade com a criança é maior do que a de um homem, o que muitas vezes acaba sendo verdade”, comenta Cintia.
Além de especialista na área de RH, ela mesma decidiu empreender ao ser demitida do emprego em que estava há seis anos. O desligamento ocorreu após ficar grávida e posteriormente ter uma criança com síndrome de Down. “Descobri o diagnóstico durante a gravidez e continuei trabalhando nessa empresa. Quando a Ágata nasceu, ela ficou internada sete meses e 14 dias para fazer uma correção cardíaca, e nesse período eu perdi meu emprego”, relembra. “Não sabia como seria o meu retorno para o mercado de trabalho e já tinha ouvido de alguns amigos que eu teria dificuldade em voltar para o mercado por ter uma criança com deficiência e devido às necessidades diferentes que ela teria diariamente”, completa.
Ao receber a rescisão do emprego, Cíntia viu no empreendedorismo a possibilidade de ter tempo para cuidar de si e da filha, além de conseguir usar as habilidades e competências que havia adquirido ao longo da carreira na área de gestão de pessoas e de recursos humanos. “É um sonho realizado e o que me inspira é o fato de eu poder dar boas notícias para as pessoas. Tem muita gente que dorme e faz oração para Deus pedindo um emprego, além da minha filha também me inspirar a seguir”, celebra.
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