Nos anos 2000, a expansão do mercado de trabalho formal favoreceu a criação de uma nova classe média, com maior apetite para o consumo, impulsionado pela maior oferta de crédito. Hoje, as expectativas deterioram, e a ascensão social se tornou mais difícil, avaliam especialistas.
A frustração ocorre especialmente entre a classe média tradicional, que não foi beneficiada pelos programas sociais do governo e pelo aumento do salário mínimo e usa serviços privados de saúde e educação.
Nesse novo cenário, os especialistas apontam que há uma preocupação desse segmento social de preservar as conquistas já alcançadas. No passado, havia mais otimismo. Veja abaixo o que eles pensam:
Avanço do emprego formal favoreceu salto
O economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, levantou o debate sobre a formação de uma nova classe média no Brasil, que cresceu a partir de meados dos anos 2000 e foi classificada como classe C, fazendo um recorte por renda. Agora, ele diz que essa parcela da população já superou o recorde de 2014 e deu um salto no ano passado:
—A classe média deu um salto, principalmente as classes A e B. Há um processo contínuo de melhora em 2024 com ganho de renda, de 7% de renda de trabalho (até o terceiro trimestre do ano passado).
A expansão recente da classe C vem como reflexo do aumento do emprego formal, ainda considerado um ativo para essa parcela da população, por ser mais estável. Desde 2023, houve a criação de 3,6 milhões de vagas com carteira assinada, lembra Neri.
O avanço da tecnologia e da digitalização também trouxe uma outra dinâmica para essa nova classe média. Permitiu que seus integrantes tivessem seus próprios negócios, ganhando com seus próprios ativos, como alugar e dirigir por aplicativo ou usar o smartphone para prestar um serviço, afirma Neri:
— Um avanço que permitiu descentralizar. Trouxe um novo ingrediente cultural para o empreendedorismo, seja por subsistência ou acumulação.
Neri diz que também é um momento bom para os jovens, com a transição demográfica que reduziu essa parcela da população.
Para ele, um dado novo é a deterioração das expectativas, principalmente da classe média tradicional, que não foi beneficiada pelos programas sociais do governo e o aumento do salário mínimo e usa serviços privados de saúde e educação:
—Nesse período de boom da classe C (entre 2001 e 2014, um ano antes da recessão de 2015 e 2016), havia um certo otimismo do jovem brasileiro. Acabou sendo um motivo de frustração grande.
Atualmente, diz, há um certo pessimismo em relação ao país, uma divisão, uma tensão associada que não estava tão aparente naquele período.
No mesmo estrato, há distância socioeconômica
O sociólogo André Salata, que coordena o laboratório Data Social da PUC-RS e é professor de pós-graduação de Sociologia e Ciência Política, afirma que a classe média tradicional brasileira se situa entre os 20% mais ricos, estrato mais próximo do topo do que do meio da pirâmide de renda.
— São pessoas que têm um padrão de vida estável, fazem poupança, estudam em escola privada, têm plano de saúde. Os desejos de consumo estão ligados a frequentar restaurantes caros, viajar para o exterior, pôr os filhos para estudar em escolas bilíngues ou no exterior.
Já a nova classe média, a C, diz Salata, quer ter casa própria, conseguir pôr o filho na universidade, ter um trabalho mais estável, comprar eletrodomésticos mais novos e almeja uma viagem nacional.
—Essa diferença, a princípio econômica, tem uma dimensão social, simbólica, em relação aos bairros onde moram. Os estilos de vida são muito diferentes. Tem uma distinção econômica e social.
Essa estrutura socioeconômica que oscila em momentos de crescimento e retração da economia é muito inercial, diz Salata.
A última grande expansão da classe média brasileira foi em meados do século XX. Foi quando houve uma mudança estrutural, com o país deixando de ser eminentemente agrário e se industrializando, o que foi puxando a classe trabalhadora, diz o sociólogo:
— Foi uma mudança estrutural muito forte. Fez a classe média dar um boom.
Atualmente, a mobilidade social no Brasil é mais circular, define Salata. Para alguém subir, outro tem que descer, ele diz:
— É uma mobilidade de curta distância, sobem apenas um degrau. É difícil ver uma empregada doméstica conseguir ser médica.
A alta desigualdade social no Brasil impede mobilidade maior. Nos países mais igualitários, essa ascensão social é maior, explica o pesquisador da PUC-RS:
— O ponto de partida é mais próximo.
Sem poupança e acesso aos programas sociais
A classe média brasileira passou por transformações significativas ao longo dos anos, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. Um dos principais fatores dessa mudança foi o acesso à educação.
— No passado, muitas pessoas foram as primeiras de suas famílias a ingressar no ensino superior, e, agora, há um grupo expressivo que cresceu em lares onde os pais também tiveram acesso à universidade.
A expansão do crédito permitiu um aumento no consumo, mas também resultou em um alto nível de endividamento, ele alerta. Segundo dados do Instituto Locomotiva, de 2024, a classe média movimenta R$ 2,4 trilhões por ano. Mas, para Meirelles, as perspectivas de ascensão econômica dessa parcela da população estão estagnadas:
— A classe média do passado viu uma chance efetiva de melhorar de vida e de renda. Já a atual não tem uma poupança como os ricos e, ao contrário dos mais pobres, não possui acesso a programas sociais que poderiam aliviar sua situação financeira.
De acordo com dados do Instituto Locomotiva, baseados na Pnad Contínua de 2022, 44% dos trabalhadores de classe média não tinham carteira assinada ou estavam por conta própria. Renato Meirelles diz que essa informalidade atinge diretamente o padrão de consumo da classe média:
— A instabilidade do mercado de trabalho e o crescimento da informalidade afetam essa parcela da população. Muitos trabalhadores da classe média passaram a atuar como autônomos ou empreendedores, o que diminui a renda por causa da falta de benefícios, de férias remuneradas e Previdência Social.
A maior preocupação dessa da classe média hoje não é a ascensão, mas a manutenção do padrão de vida, diz ele:
— No passado, havia uma perspectiva otimista de crescimento. Hoje, o desafio está em evitar a regressão social. Com mais dificuldades para avançar, essa camada da população vive uma luta constante para manter suas conquistas e garantir um futuro mais estável.